BRUNA ROCHA | HELOÍSA ARMELIN | O exemplo de São Paulo na manutenção de contratos públicos: Lei Municipal nº 17.335/2020
O exemplo de São Paulo na manutenção de contratos públicos: Lei Municipal nº 17.335/2020
A crise instaurada no Brasil e no mundo em decorrência da pandemia do COVID-19 tem o potencial de abalar as premissas de praticamente todas as espécies de contratos administrativos. Em decorrência de um fato completamente imprevisível e excepcional, os contratados vêm suportando grandes reflexos nas avenças celebradas com o Estado, sobretudo em razão das medidas restritivas – necessárias, frise-se – estabelecidas pelo Poder Público para conter a disseminação do coronavírus.
Nesse contexto, é fundamental que o Poder Público desde já emita diretrizes e soluções, ainda que transitórias, para o enfrentamento da pandemia, conferindo instrumentos aos gestores desses contratos para o socorro dos parceiros privados como forma de evitar o “apagão das canetas” e a geração de enormes passivos, os quais têm aumentado exponencialmente dia após dia.
No Município de São Paulo, o tema foi objeto de disciplina pela Lei nº 17.335, de 27 de março de 2020, por meio do qual foram autorizadas medidas excepcionais no âmbito dos contratos administrativos de prestação de serviços contínuos e das finanças públicas em face da situação de emergência e do estado de calamidade pública decorrentes do coronavírus.
As disposições dividem-se em três grandes frentes: (i.) aquelas voltadas à manutenção dos contratos de prestação de serviços, (ii.) a previsão de subvenção para evitar o desemprego dos trabalhadores do setor de transporte urbano e (iii.) a autorização para adoção de medidas de ordem financeira visando a mitigar frustração de receitas.
As primeiras delas têm por objeto, conforme prevê o artigo 1º, a manutenção da prestação dos serviços contínuos (entendidos como aqueles que constituem necessidade permanente do órgão ou entidade contratante, que se repetem sistemática ou periodicamente, ligados ou não à sua atividade fim, ainda que sua execução seja realizada de forma intermitente ou por diferentes trabalhadores e que a contratada se utilize de mão de obra não eventual para a prestação do serviço), de forma a possibilitar o pronto restabelecimento, na sua normalidade, após a pandemia.
Para tanto, é autorizada, para os casos em que for indicada a suspensão total ou parcial do serviço, a manutenção do pagamento mensal do contrato, “deduzidas as despesas diretas e indiretas que efetivamente deixarem de incorrer, garantindo o pagamento das despesas devidamente comprovadas com pessoal e encargos dos trabalhadores que deixarem de prestar os serviços em razão da emergência e calamidade pública” (art. 3º, caput). Referido pagamento é condicionado à não demissão de empregados afetos à prestação do serviço e a outras condições porventura tidas como necessárias pela contratante no caso concreto.
Além disso, a lei prevê, a critério da unidade contratante, a prorrogação automática, pelo prazo de dois meses, de contratos administrativos, de atas de registro de preços e de instrumentos congêneres que vencerem no prazo de dois meses contados da publicação do diploma legal. Também foi prorrogada a validade de concurso público para provimento de cargos de diretor escolar, supervisor de ensino e professor de educação infantil.
Diante dos reflexos da pandemia no setor de transporte urbano, como a diminuição da frota em circulação em razão das restrições impostas à circulação de pessoas, a lei, na segunda grande esfera de disciplina, autoriza o Poder Executivo a conceder subvenções econômicas para evitar o desemprego de trabalhadores de transporte pelo período de quatro meses, na forma detalhada no Decreto nº 59.321, de 1º de abril de 2020.
Por fim, em relação às medidas de ordem financeira, a Lei nº 17.335/2020 autoriza, entre outras ações, a transferência, à Conta Única do Tesouro Municipal, do superávit apurado no encerramento do exercício financeiro de 2019 e das receitas totais arrecadadas no exercício de 2020 dos fundos elencados pelo texto legal. Além disso, por conta da situação de emergência e do estado de calamidade, o artigo 12 do normativo municipal prevê a realização de compras emergenciais, com dispensa de licitação, observado o dever de transparência e publicidade.
Como se viu, a lei traz medidas excepcionais e temporárias (“a lei vigorará enquanto perdurarem a emergência e calamidade pública decorrentes do coronavírus” – art. 17) que se justificam frente ao ineditismo da situação vivenciada, já classificada pela ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO como caso fortuito ou força maior¹ .
Cabe destacar que o artigo 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) garante ao administrador que essas circunstâncias excepcionais, derivadas da situação pandêmica (tidas como caso fortuito ou força maior), serão consideradas para fins de controle dos seus atos. Prevê que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo”, o que deveria bastar para conferir conforto decisório no atual cenário.
Fato é que mesmo com a referida previsão da LINDB e com o notório reconhecimento da crise econômica decorrente do COVID-19, ou seja, mesmo diante das evidências fáticas e de fundamento legal para a tomada de decisão excepcional, sabe-se que, na prática, boa parte dos gestores públicos agem (ou deixam de agir) em função do receio de sua responsabilização individual.
Desse modo, a existência de disciplina legislativa específica sobre o regime administrativo temporário para enfrentamento da pandemia, a exemplo do que foi feito no o Município de São Paulo, assim como por outros municípios e estados², certamente conferirá maior segurança para a atuação do administrador público, evitando o tão temido “apagão das canetas”, e, consequentemente, garantindo a higidez das relações público-privadas preexistentes ou constituídas nesse cenário emergencial.
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[1] PARECER n. 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU
[2] Após a publicação da Lei Municipal nº 17.335/2020, outros municípios publicaram instrumentos normativos similares, ou com a mesma finalidade, como os Municípios de Maravilha/SC (Decreto nº 358, de 31/03/2020), Itanhangá/MT (Decreto nº 72, de 01/04/2020), Paulínia/SP (Lei nº 3.766, de 03/04/2020), Vargem Grande Paulista/SP (Decreto nº 72, de 13/04/2020), Santa Helena/PR (Lei nº 2.800, de 24/04/2020) e Eldorado do Sul/RS (Lei nº 5.094/2020). Em nível estadual, temos o exemplo do Paraná, com a publicação da Lei nº 20.170, de 07/04/2020). Antes da publicação da lei paulistana, o Município de Forquilhinha/SC prorrogou os contratos, parcerias, convênios e instrumentos análogos ou congêneres durante o período de emergência decretado naquele território municipal. É nesse sentido o Projeto de Lei e Lei nº 2139/2020, de relatoria do Senador Antônio Anastasia, que visa a estabelecer regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública durante o período de pandemia.